VALEU A PENA (vivenciando)

Minha ida para estudar no Colégio Nova Friburgo deu-se por uma dessas imposições do destino, e da forma mais indireta possível.

As origens do fato remontam a 1946. Meu pai, Rodolfo Chermont, tinha uma fazenda de gado no município de Chaves, na famosa Ilha de Marajó, no Pará. Nessa época, era governador do então Território Federal do Amapá o cel. Janary Nunes, que mais tarde, foi presidente da PETROBRÁS. O coronel Janary viajava de avião, para Belém, sobre o Marajó, quando a aeronave começou a entrar em pane. Na falta de pistas de pouso pelas redondezas, o piloto procurou um local em que pudesse aterrisar, naquela emergência. E fez um pouso perfeito, em uma praia , que ficava bem em frente da casa-sede de nossa fazenda. Ajudado por Deus, o aviãozinho não se chocou com dezenas de búfalos que no momento, passavam pelo local. Os que presenciaram a cena, falam, da habilidade do piloto, que conseguiu aterrisar o avião na faixa de areia que é naturalmente solidificada pela constante ida e volta da marés que banham o litoral do Marajó.

Meu pai acolheu o governador, instalou-se em nossa casa e, com os limitadíssimos recursos que havia, procurou entrar em contacto com equipes de salvamento aéreo, através de um rádio-telégrafo. Mesmo agora, 50 anos depois, há muito pouco telefones em fazendas marajoaras.

Dois dias depois do acidente, como que por meio de um milagre, apareceu no local um hidro-avião, "Catalina", equipamento que os norte-americanos, após a 2a. Guerra Mundial, deixaram em Belém, na Base Aérea de Val-de-Cans. Alguns desses aviões ainda estão em uso. Outros viraram peça de museu.

As imagens do pouso forçado do avião do governador Janary e a chegada, logo depois, do "Catalina", ficaram gravadas em minha memória. Meu irmão Paulo, que também estudou no CNF, em 1958 e 1959, igualmente
lembra de tudo. Sempre tocamos no assunto, e concordamos que o evento ficou marcado em nossa memória, apesar da pouca idade que tínhamos, então. Meninos de fazenda, no longínquo Marajó, sem cinema ou TV, aqueles fatos, inusitados, e para nós espetaculares, ficaram corno imagem definitiva em nossas cabeças.

O governador ficou muito agradecido a meu pai, não só pelo apoio e solidariedade, pela acolhida, como, também, pelo esforço e pronta providência de chamar o socorro. Ele se deslocou no "Catalina" para Belém, e o avião acidentado, após ter sido recuperado na própria fazenda, conseguiu levantar vôo, felizmente.

 

Sempre que vinha a Belém, o cel. Janary, já como presidente da PETROBRAS, e figura influente da política nacional, visitava nossa casa, pois, logo depois daqueles fatos, minha família se transferiu para a capital do Estado.

Nos fartos almoços, depois de comer um saboroso "pato no tucupi' e uma tigela de açaí com muito açúcar e farinha de tapioca na sobremesa, o coronel dizia a meu pai que ele deveria mandar para estudar, em Friburgo, seus dois filhos mais velhos, da união com minha mãe D. Cora. Dizia ser um "colégio modelo", "padrão de ensino moderno no Brasil". Informava que seu filho, Janarizinho, estava lá, estudando, e se dava muito bem; que o sistema de internato era brando, as instalações modernas e o clima do lugar ameno e muito agradável (depois eu fui ver que, de maio a julho, não era tão "ameno", para quem tinha vindo da linha do Equador).

Meu pai gostou da idéia, mas resolveu envolver outras pessoas, e convenceu um pecuarista amigo dele, Atreu Baena, a também mandar um filho, o Emilio. Foi remetido um telegrama (via 'Western") para a Fundação Getúlio Vargas, na Praia de Botafogo, pedindo reserva de matrícula, explicando que elas seriam efetivadas quando chegássemos ao Rio, nos próximos dias.

Corria o ano de 1958 . Recordo o velho casarão da Praia de Botafogo. Com a coordenação do Colégio, alguns detalhes foram acertados: que tipo de roupa seria necessário, quando teríamos o teste psicológico, etc..
Confesso que estava embevecido. Há pouco tempo, eu havia saído da Ilha do Marajó para morar em Belém, o que já tinha sido um passo muito avançado na minha vida. Logo após, graças à "corda" do cel. Janary e à visão de meu saudoso e bom pai, eu estava em pleno Rio de Janeiro, Capital da República, a caminho de um colégio do qual falavam maravilhas, principalmente quanto ao método avançado e mecanismos de ensino.

Até que, tudo resolvido, chegou o dia glorioso da subida para Friburgo. Dentre outros, recordo-me que estavam no ônibus o Silvério Ortiz, Márcio Dornelles e Flávio Groterra. Eram veteranos, acostumados com a viagem, faziam uma bagunça infernal. Paulo, meu irmão, o Emilio Baena e eu víamos aquilo com algum espanto. O Emilio, por sinal, doido para entrar na bagunça. Já no colégio, ganhou o apelido de Frei Emilio", porque foi ajudar missa logo nos primeiros dias de aula e praticou uma façanha memorável: certa noite, desceu à cidade, escondido, e tomou um grande "porre". No retorno, ao pé do morro, encontrou um cavalo, e subiu a serra no lombo do animal. Chegando ao colégio, resolveu ir dormir com o bicho no cíentifico. Em pleno corredor do dormitório, o quadrúpede fazia um barulho dos diabos acordando todo mundo. Foi incrível:

Naquela primeira viagem a Friburgo, já na subida da serra, notei que a estrada estava em obras. Chovia bastante, e o ônibus deslizava no barro, não conseguindo sair do lugar. O motorista, então, comunicou que teríamos de fazer uma baldeação, para podermos continuar a viagem. Eu não entendi bem. No Marajó, "baldear significava vomitar. Então, por que eu deveria fazê-lo, naquele instante? Será que o peso do ônibus seria aliviado se todos os passageiros "vomitassem? Estas dúvidas passaram pela minha cabeça de menino do interior. Somente após a troca dos passageiros e bagagens para outro veículo é que eu entendi que a palavra tinha outro significado, e percebi, também, que eu estava entrando em outro mundo.

Chegando a Friburgo, ficamos hospedados no elegante Hotel Sans-Souci. No dia seguinte, fomos conhecer o colégio. No meu caso, eu tinha vencido a distância de um continente para chegar ali. Fiquei boquiaberto coma beleza do lugar. Eu via pela primeira vez aquelas montanhas, que iriam fazer parte e emoldurar tantos anos de minha vida. Impressionou-me o conjunto de prédios: o ginásio (num estilo belíssimo, europeu), o científico, o ginásio de esportes, a escolinha, as casas dos professores, os caminhos de pedra entre os bosques, etc. Tudo bonito, harmonioso. Eu estava acostumado com a planície, com a beira dos rios e igarapés. Para mim, tudo aquilo era novo, diferente. Foi uma visão inesquecível.

Meu primeiro quarto foi no grupo II. A porta de entrada, uma pequena papeleta informava quem seria meus companheiros: Marco Antonio, Felix e Epaminondas Gracindo. Este último, o famoso Gracindo Júnior, conhecido e aplaudido em todo o país por sua atuação como ator e diretor de TV. Aliás, Gracindo tem dito o repetido que começou a sua carreira no Clube de Teatro do CNF. Quanto a mim, foi o inverso: tive encerrada minha "carreira artística" neste mesmo Clube de Teatro, como vou contar adiante.

A historinha se passou mais ou menos assim: estava eu fazendo o papel de um cafajeste, e contracenava comigo a Tânia Castilho, filha do professor Mário Castilho, que era o diretor do Clube de Teatro. Em determinado momento, tínhamos um dialógo áspero, que culimanava com um tapa no rosto da personagem que Tânia interpretava. Nos ensaios, correu tudo direitinho: eu tocava levemente na face de Tânia, que se encarregava de cair no chão, fazer alarde, chorar, espernear, etc. No dia em que a peça estreiou, estava o auditório repleto; alunos, professores, funcionários, convidados da cidade. Muita gente teve que ficar de pé, pelas laterais. Resolvi dar um toque mais real à minha interpretação, e quem sabe, sair dali consagrado como ator. No auge da discussão com Tânia, e chegando o momento em que eu devia fingir que lhe dava um tapa, desferi na pobre moça uma sonora bofetada, com toda a minha força e convicção artística.Para falar toda a verdade, dei-lhe uma porrada sem igual. Tânia caiu no chão, espantada, confusa, chorando como um bebé. Estava no auditório o Zeno Veloso (hoje professor de direito, Deputado no Pará) que se levantou gritando: "muito bem, bravo", o que levou a todos os que lotavam o auditório a me aplaudir, de pé, e demoradamente. Surpreso, envergonhado, eu não sabia se socorria a Tânia, estatelada no palco, ou se agradecia à pláteia. Até hoje, não sei se o Zeno resolveu me aplaudir por ser meu amigo, querendo consertar o vexame que eu tinha dado, ou pelo fato de ele ter alguma diferença com a Taninha, e não gostar dela, por alguma razão. O que eu sei, desde aquele dia, é que o teatro não é, exatamente, o meu negócio

No CNF, muitas coisas eram novidades para mim. Ficava impressionado com as aulas, dadas em salas-ambientes: ciências, geografia, canto, história, t.rabalhos manuais, matemática, fisica, química, etc. Havia laboratório, fazíamos as mais diversas experiências. Nas salas, dispúnhamos dos mais modernos instrumentos didáticos-pedagógicos. Tantas décadas depois, não sei se, por todo este imenso país, haverá uma escola pública ou privada com tantos recursos quanto o nosso velho e querido Colegio Nova Friburgo. Felizes as gerações de brasileiros que tieram a ventura e o privilégio de passar por lá,

A competência dos professores deve ser ressaltada. Eles viviam na escola, em casas próprias, com suas famílias (alguns, poucos, eram recrutados na própria cidade de Nova Friburgo). Dedicavam tempo inteiro ao colégio. Entre os professores e alunos havia urna camaradagem, um companheirismo um elo de amizade, de fraternidade, dadas as circunstâncias. Muitos deles eram chamados para dar cursos no exterior. E, de todo o país, vinham professores para fazer estágio e praticar no CNF, aprendendo as mais modernas técnicas de educação e didática. Para usar uma frase atual: era coisa de primeiro mundo. Particularmente, ficavamos felizes, e excitados (por que não confessar) quando chegavam as delegações de normalistas, recém-formadas. Era uma beleza!

Os momentos de alegria eram uma constante no CNF. Triste mesmo, fiquei um dia, por causa da morte de um nossos colegas Asdrúbal Lavareda de Souza, que escorregou na cascatinha, despencando montanha abaixo. Foi uma tragédia! Não consegiu assimilar aquele acidente. Aquilo não combinava com nenhum de nós. Quando fui presidente do Conselho de Alunos, nossa diretoria encomendou uma pequena placa de mármore, que fixamos na sala onde funcionava o Conselho, fazendo uma homenagem ao Asdrúbal. Até hoje, a placa está lá. Na ocasião, isto nos fez, interiormente, um bem enorme. Que Deus tenha em descanso eterno a boa alma daquele nosso colega.

Passei sete anos no Colégio Nova Friburgo. Nos primeiros dois anos, fiquei observando, assimilando, aprendendo. Aprendi muito aprendi um pouco de tudo. Já praticava esportes com certo desembaraço. Já acompanhava o raciocínio dos colegas que tinham vindo de centros mais adiantados. Já era cogitado para participar dos grandes momentos da vida do colégio. E já arriscava algumas molecagens, como fugir para a cidade em pleno horário de aulas. Algumas vezes e por corda do Silvério Ortiz - para assistir aos treinos da seleção brasileira de futebol, a caminho da taça "Jules Rimet". Vi de perto, cumprimentei atletas imortais, como Belini (do meu Vasco da Gama). Newton Santos, Garrincha, Didi e o então menino Pelé. Muitas vezes, eu faltei a missa para assistir ao culto protestante. Quem me levou foi o Antonio Teixeira Júnior (o "Ceará", prematuramente falecido), que não era evangélico, coisa nenhuma, mas ia ao culto dos protestantes porque lá havia a distribuição de biscoitos e chocolates. Deus me perdoe!

O esporte,do CNF, era um capítulo à parte. Coisa séria, organizada. Pratiquei atletismo, voley, basquete e futebol. Minha bandeira era a azul. Fui campeão das Olimpíadas, algumas vezes e considerado o melhor atleta, em 1962 (puxa, trinta anos atrás....).

Não era C.D.F, mas estudava bastante. Alias, quem não estudasse bastante, não aguentava o ritmo do CNF, uma escola modelo e padrão. Corado pela modéstia, devo contar que uma das honras de minha vida foi ter sido distinguido pela congregação como aluno-excelente de 1964, recebendo o prêmio "Saúde, Saber e Virtude",

Há muito e muito mais para dizer, para relembrar, para contar, e isso pode ficar para outros artigos.

O Fernando Pessoa, em passagem famosa e repetida, ensina que "tudo vale a pena, se a alma não é pequena". O CNF não só valeu a pena, como abriu a nossa alma para os grandes espaços da vida adulta.

Ass. AFONSO BRITO CHERMONT

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