A flâmula do Real Madri

Era o ano de 1985, talvez, recebi em minha casa, em Belém, a visita, ilustre, do querido professor Mário Castilho. O acompanhava sua filha Sandra. A alegria foi grande: pelo mestre amável e competentíssimo, a quem eu admirava muito pela sua postura de educador, pelas suas palavras e conselhos sempre sábios, pelo mestre cordial, mas exigente com seus alunos, pela sua forma criativa de dar uma aula, pelo liberal e democrata que era ele. Tratava-se, ainda, de pessoa ligada ao teatro e outras "atividades extra classe", que o Colégio Nova Friburgo tinha em seu currículo escolar e desenvolvia como em nenhum outro país, e que eu pensava, naquela época, que se tratava de seções mata tempo, em um colégio onde estavam alunos internos, ávidos por uma distração maior, mas que, tinham um sentido profundo como de educação complementar, essencial na formação dos jovens.

No CNF, além do teatro, havia muitas outras atividades "extra classe": a rádio PR Chacrinha; Mecânica – lembro do Prof. Rossi ensinando, com um motor à sua frente, o que eram os cilindros o bloco do motor, como o carro andava; o Clube do selo – um dos sócios mais entusiasmado era o Pinóquio, um garoto narigudo – como se pode deduzir -- que estudou no CNF, que carregava álbuns imensos, com ares de filatelista; o Clube das Artes do qual muitos se afastavam porque espalharam, de sacanagem, que havia lá muitos veados. Nesse clube a excelente Maria Alice – representante dos artistas plásticos da Associação dos ex alunos.– deve ter aprendido a fazer esses vasos, pintar os pratos, peças, naquela época, juntamente com as professoras.

Sim, e o Castilho? Ele me impressionava pela qualidade de suas aulas. Jamais posso esquecer da sala que usava, tipo um anfiteatro, com muitos equipamentos, aparelhos de som, projetores, telas, e das inúmeras experiências que ele fazia conosco para demostrar , como os sólidos dilatavam com o calor e muitas outras interessantíssimas. Os melhores experimentos ficavam numa exposição, como o nome do aluno que trabalhou nos mesmos e o ano que havia estudado no CNF. Tudo era feito com muito esmero. Em muitas universidades, décadas e décadas depois, ainda não temos tantas salas como aquela.

A dita sala de Ciências Naturais, ou "sala do Castilho", ficava logo depois da biblioteca e era com prazer que assistíamos às aulas menos pela nossa vontade de apreender, e muito, com certeza, pela vontade de ensinar, pelo esforço e dedicação do Castilho, aliados à cortesia com que nos tratava e seu refinado humor. Lembro de um menino aloirado, que se chamava Hanz Hoachim e o Castilho dizia que era o primeiro alemão com nome de português que ele conhecia. Hanz reagia às gozações e se vingava, também: nas aulas que havia projeções , usava-se um moderno aparelho que está hoje em exposição no Centro de Memória, e ele era o encarregado de prensar o livro que o professor lhe entregava indicando em que tela isso deveria ser feito. Aí, em uma manobra bem ligeira, unia seus dedos da mão ( o indicador e polegar ) fazendo uma rodinha que fazia projetar na tela um símbolo bastante conhecido de todos. O professor de costas para a tela, não via a molecagem do Hans, e nós nos segurávamos para não espoucar de rir.

Nessas circunstância apreendi em uma aula, que ele chamava de prática, usando uma carcaça e vísceras de um animal bovino, qual a diferença entre de osso e cartilagem óssea. Sintam a diferença, dizia ele, com as mãos vestidas numa luva e, na outra mão uma tesoura indicando, ao cortar, que o osso tinha maior resistência que a cartilagem. Esta podia ser facilmente cortada era mais flexível. Por mais que alguém não se interessasses pelo assunto mas, a maneira como era didaticamente colocado não havia possibilidade de não ser assimilado.

Então, muitos anos depois, para minha honra, estava então em minha casa o caríssimo professor. Ele me contou que estava viúvo – Bebete havia falecido de uma doença que a consumiu rapidamente, disse-me –, fiquei penalizado, pois me lembrei do casal era muito unido, tinha muita coisa em comum. Ambos eram professores, gostavam de teatro, viviam alegremente, eram pais de muitos: filhos Tânia, Ana, Nara, Mário, João, Sandra.

Achei que devia fazer uma recepção especial para aquele homem. Convidei o Ruy Seligman( cujo apelido em Friburgo era "Maria da Toca", pois sentia muito frio e vivia debaixo de quatro cobertores) e o Zeno Velloso, para que fossemos almoçar, no dia seguinte, em um restaurante típico, que fica na Ilha do Mosqueiro, à 60 Quilômetros de Belém. É um lugar paradisíaco, tipicamente amazônico. Castilho ficou impressionado com a praia , que é de rio, mas não se consegue enxergar a outra margem, de tão larga. As ondas ( sim, é um rio com ondas! ) são enormes e quebram na areia, como as do mar. Em frente, fica o Marajó, e por aí vai!

Evidentemente, regada a muitas cervejas Cerpa e pelo melhor uísque escocês, a conversa girou em torno do nosso CNF. Falamos com saudades de amigos comuns, professores, alunos e funcionários. Lamentamos o fechamento de uma instituição exemplar que a Educação no Brasil não teve a inteligência e o bom senso de preservar na magnitude com que foi concebida .Falamos das nossas saudades daqueles tempos, pela juventude bem vivida . pelos amigos que se foram. Tudo isso foi tocado, com muita emoção, entre risos e lágrimas.

Em dado instante Zeno, ficou sério, vira-se para Castilho e pergunta se ele tem tido contato com o Danni. Grande Danni! Prof. Danni José Alves. Alto, magro, de óculos, voz grave, ar circunspecto. Gaúcho típico, excelente mestre de Filosofia, era orientador escolar. Tinha um carrão bonito, um Mercedez Benz que comprou quando passou uns tempos dando aulas no Paraguai. Sua casa, era a segunda vindo do ginásio de esporte para o prédio do ginásio, ao lado da casa do Dr. Ratis Bonna. Lembro dele porque, logo que cheguei em Friburgo , na distribuição do material recebi um livro grosso justo de filosofia e pensei: " se esses caras me obrigarem a ler essa porra toda eu estou é fudido".

Castilho, muito amigo do Danni, respondeu que tinha contato em Niterói, no Colégio de Aplicação, que reuniam vez por outra, etc. Zeno então disse: "mestre Castilho vou pedir um grande favor. Tire-me um peso da consciência quando falares com o Danni".

Essa história deu-se assim: Zeno gostava muito de futebol. Nos anos sessenta, embora a seleção do Brasil tivesse sido campeã em 58 e 62 Pelé já despontava como o melhor jogador, o Real Madri , da Espanha era considerado o melhor time de futebol do planeta, uma verdadeira seleção mundial com atletas de várias nacionalidades.

O Real fez uma excursão pelo Brasil e ia jogar com o Vasco da Gama, no Maracanã. Os atletas do time Espanhol ficavam hospedados no Hotel Novo Mundo no Rio. Na véspera do jogo Zeno entendeu que poderia conhecer, cumprimentar e obter os autógrafos dos jogadores. Foi até o hotel na Praia do Flamengo. Sua pretensão foi barrada logo na entrada. Contou que o porteiro chefe, sem a menor consideração, disse: "garoto você acha que esses artistas vão perder tempo contigo; eles estão concentrados para o jogo, te manda menino ".

Zeno ficou profundamente ofendido. Não tanto pela grossura do porteiro mas, pela frustração em não conseguir aquilo que poderia ser seu maior troféu. Como iria justificar, aos seus colegas do CNF, a quem havia prometido obter os autógrafos ?

Olhado a paisagem, quando estava no ônibus, surge-lhe uma idéia. Pensou: "e se eu mesmo assinar pelos caras? Ninguém vai saber, mesmo, depois eu digo a verdade mas, eu não levo a gozação e depois eu conto a verdade". De posse de um jornal que dava toda a escalação do time, Zeno mandou a caneta na flâmula que tinha comprado com essa finalidade. Lá ficaram as assinaturas do Di Stefano, Puskas, Gento, Santa Marina, Del Sol, etc. Do goleiro ao ponta esquerda todos haviam "gentilmente" assinado a flâmula. O mais famoso do time, o argentino, Di Stefano, que diziam os entendidos ser o melhor jogador da Europa, ainda foi mais delicado e colocou: " saludo mi mui amigo Zeno. Di Stefano".

Sei que o terrível Zeno subiu para Friburgo de um fim de semana e espalhou que estava com aquele valioso símbolo e que havia sido distinguido por toda a equipe do Real Madri, que aquelas importantes figuras do futebol mundial, perguntaram, inclusive, se ele jogava futebol ao que teria, modestamente, respondido que batia uma bolinha ali pela ponta esquerda etc. Foi um sucesso ! Zeno se tornou a figura mais destacada do colégio naqueles dias. Todos queriam saber detalhes daquela façanha, daquele cara lá do Pará que conseguiu furar a segurança e falar com os figurões do time espanhol. Foi a glória!

Certo dia , o Prof. Danni chamou Zeno na sala de Sala de Orientação Escolar - SOE. Com uma profunda angustia, nosso personagem, partiu ao encontro do seríssimo professor. A sala do Danni ficava perto do Grupo I e no seu interior tinha um conjunto de vidros de cor – uns brancos outros verdes – que diziam que aquilo funcionava como um detetor de mentiras que, que não adiantava querer enganar e, logo o Danni, mago da psicologia.

Zeno estava disposto a tudo e ia enfrentar o mestre e murmurando: " seja o que Deus quiser". Mas o professor não tratou de nenhuma questão disciplinar. Começou com uma exposição de que gostava muito de futebol. Você sabe Zeno eu sou inclusive o treinador do scratch ( era assim que se falava ao se referir a equipe ) do colégio e seria bom que você fizesse uma doação da flâmula com o autógrafo do Real Madri para a nossa sala de esporte. Lá, a relíquia, ficará para sempre exposta e, ainda, nas atividades extra - classe, no clube de esporte, você será sempre lembrado. Eu mesmo sou testemunha de quanto ele gostava de futebol pois, uma vez lhe perguntei: -- Por quê se fala em quarto zagueiro ? Danni me respondeu que era por causa da tática: antigamente se jogava com três zagueiros, agora, modernamente, mais um back veio para a zaga, no sistema quatro dois quatro e, por isso, esse jogador agora é o quarto homem da defesa.


Tremendo da cabeça aos pés, mas se controlando para não levantar suspeitas, Zeno balbuciou que ia procurar a flâmula, prometendo retornar no dia seguinte. Nervoso, promoveu uma reunião de urgência com seu estado maior, todo seu staff. Pois não é que ele tinha uma equipe de "assessores" ? Garantia que alguns deles seriam Ministro, quando fosse eleito Presidente da República. Eu já estava nomeado para o posto da Fazenda; o Lopinho seria Ministro da Indústria e Comércio e ia dirigir a indústria automobilística, etc. Certa vez, Zeno quase levou uma surra do Irso Lunardi porque disse que iria nomear faxineira do Palácio a então namorada de nosso colega de Matão, bom de porrada que só ele. O futuro Presidente da Republica já tinha escolhido, também, sua Primeira Dama, a irmã do Paulinho Perobo. Num domingo a menina foi visitar o CNF, acompanhada do verdadeiro namorado, um sujeito enorme, fortão, e dissemos ao Zeno que o cidadão queria conhecê - lo. Alegando estar gripado, tendo que estudar para uma prova de matemática com o Talvane, passou o ensolarado Domingo trancado no seu quarto. Por sinal, há um episódio gozadíssimo com o prof. Talvane. O mestre, para que decorássemos melhor as fórmulas, produzia versinhos. Um dia, soltou o seguinte: minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, seno a co-seno b, seno b co-seno a . Zeno, que só tirava notas baixa na matéria, adulterou e divulgou seu versinho: "Minha terra tem mangueira onde canta o urubu, ou estudo matemática ou vou tomar no cu".

Depois de relatar aos colegas mais chegados – o staff – a situação dificílima que estava metido com o prof. Danni, alegou: "vejam a cagada que eu me meti. O homem quer porque quer a flâmula do Real. Mas as assinaturas são falsas. É tudo enrolação. Que posso fazer? Estou numa fria, acabo sendo expulso do Colégio. Me ajudem".

Após muitos debates e discussões, analisados os prós e contras, ficou decidido, pelos seus assessores e acatado por aquele proeminente mas assustado líder, que a tal flâmula seria entregue ao prof. Danni, como uma verdadeira peça de museu. Não se falaria mais nesse assunto e quando o caso estivesse esquecido , se surgisse uma oportunidade, daríamos um jeito de fazê-la sumir da sala.

Conforme deliberado, a famosa – e agora maldita – flâmula foi passada ao Danni, que a recebeu com visível orgulho e satisfação, fazendo um pequeno discurso de agradecimento, sugerindo, até, que se promovesse uma festa uma festiva inauguração, que Zeno, achou dispensável.

Naquele almoço, na Ilha do Mosqueiro, em Belém do Pará, Zeno contou tudo para um espantado prof. Castilho, rogando: "Se tu encontrares com o Danni. Diz para ele toda a verdade. Tudo não passou de uma sacanagem. Fui eu mesmo que coloquei os nomes dos jogadores. Mas não tive coragem de falar, naquela época. Tira, Castilho, esse peso da minha consciência, que carrego há mais de trinta anos. Pede desculpas por mim ao Danni, e manda ele jogar fora a porra daquela flâmula ".

Afonso Brito Chermont ( CNF 1958/64 )

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