EXPLICAÇÕES A MEUS FILHOS

No almoço de ontem, veio à tona o assassinato cometido em Brasilia, por um grupo de cinco rapazes, que jogaram álcool em um índio que dormia em um ponto de ônibus, e o incendiaram em seguida. O coitado morreu no dia seguinte, e o país entrou em comoção. Principalmente porque, sendo os rapazes filhos de gente importante de Brasília, há uma percepção geral de que, mais uma vez, não vai haver punição nenhuma.

Principalmente porque o advogado deles já estruturou uma ótima linha de defesa:

- Eles não sabiam que era um índio, pensaram que fosse um mendigo!

Meus filhos ficaram muito angustiados com o crime, e indignados com a idéia de que pessoas pudessem proceder dessa forma (aqui estou me referindo aos rapazes, não ao advogado!).

No decorrer da troca de idéias, veio a inevitável pergunta:

- Pai, o que você faria se fizessem isso com um filho seu?

Que resposta podia dar?

- Nada!

- Nada?!! Você deixaria assim, matavam um seu filho e você não fazia nada?!

Senti que a coisa estava caminhando para um desvio perigoso.

- Acho que poderia pensar em fazer algo; contrataria o melhor advogado que pudesse, se preciso venderia nossas propriedades para pagá-lo, e não descansaria enquanto ele não conseguisse a maior punição prevista para esse tipo de crime: trinta anos de cadeia! Isso traria meu filho de volta?

- Não.

- Então de que me adiantaria? Além do mais, usar todo nosso patrimônio para isso não seria justo, uma vez que existem outros filhos para serem criados, e que perderiam tudo ou muita coisa se o que temos fosse usado nesta finalidade. Depois, a lei proíbe que um filho seja privilegiado na divisão do patrimônio, e no fim das contas seria isso o que estaria propondo: gastar com um filho morto o que poderia ser usado pelos outros. Faria outra coisa, então: não ligaria para a pena de prisão que ele recebesse, mas quando estivesse preso pagaria a algum outro bandido para matá-lo. E isso: traria meu filho de volta?

- Não.

- Então não serve. Além do mais, eu me tornaria também um criminoso. Ele estaria preso porque matou meu filho, e eu o mando matar e espero não ser preso por isso. Coisa de doido... Deixa ver... pegava ele, encharcava de gasolina e acendia fogo também, para ele aprender que isso dói, e mata. Traria meu filho de volta?

- Não, pai.

- Também não serve. Em vez de matá-lo, então, eu o manteria preso comigo, dando-lhe uma surra a cada dia, para que ele sofresse bastante. Isso traria meu filho de volta?

- Não.

- Então, não vale a pena fazer. Que mais poderia eu fazer? O que vocês acham que eu ou qualquer outra pessoa poderia fazer, de forma a que meu filho, morto, voltasse?

- Nada, pai.

- Pois é exatamente isso que eu faria: nada!

Ah!... um perigo do desvio já foi contornado: já foram capazes de entender o que seja vingança, e sua inutilidade.

- E o criminoso fica sem castigo, pai?

- Castigo aplicado por mim, sim, que não é da minha conta nem minha responsabilidade aplicar castigos a criminosos. A sociedade estabeleceu penas, e os juizes determinarão, em cada caso particular, que pena deve ser aplicada. Se houver uma diferença entre o castigo dado a esses rapazes, que são filhos de gente importante, e o que foi dado aos que, anos atrás, incendiaram no Rio de Janeiro um mendigo, e não eram filhos de algo - fidalgos, como se dizia, - isso será responsabilidade da sociedade, que aceita haver uma diferença entre ricos e pobres no que tange à responsabilidade civil e atendimento às leis. Já aceitou essa diferença ano passado, quando deixou no barato a absolvição do filho de um ministro do governo, que estando alcoolizado e em excesso de velocidade atropelou e matou um "reles" operário. Ali, os executores da justiça do governo criaram uma nova idéia altamente revolucionária, uma lição que não pode ser desprezada nem desaprendida por ninguém: se acontecer a infelicidade de atropelarem alguém, voltem e passem com as rodas do carro pelo menos duas vezes sobre o atropelado, para ter certeza de que morreu. Aí, fujam tranqüilos, porque sendo certo que a vítima está morta, fica-se desobrigado de prestar socorro e, inevitavelmente, ser preso em flagrante.

- Sem brincadeira, pai: não há punição para uma coisa dessas?

- Difícil dizer, na verdade. Que punição é adequada para quem faz uma coisa medonha dessas, matar queimado um semelhante que nada lhe fez, estando simplesmente a dormir ao relento? Monstros desse tipo, para quem a vida dos outros não tem o mínimo valor, e que nunca deixam de encontrar quem os defenda dizendo que se enganaram, não sabiam que era um índio, pensavam que fosse um mendigo... dificilmente conseguem se sentir castigados, punidos, pois sem ter sentimentos, não terão arrependimentos, e sem este, não há validade em nenhuma punição. No máximo, sentir-se- -ão perseguidos. Para uma pessoa de caráter bem formado, a simples idéia de conviver com esta lembrança, de que praticou tal ato, e foi capaz de tal atrocidade, já seria castigo suficiente. Para os mal formados, nada é bastante.

O que resta? A vingança, ou a segregação. Como vingança, propus um monte de besteiras há pouco, e qualquer uma delas realmente pode ser implementada por quem o deseje fazer, mas o importante mesmo, que é a reparação do mal feito, isso nunca será conseguido por uma vingança.

Só entendo uma punição como parte de um processo de reparação. Cabe ao ladrão devolver o produto do roubo, ao caluniador proclamar a verdade e indenizar a moral atingida, e ao assassino...? Como pode ele reparar seu crime? Simplesmente, não pode; e nesses casos, não me parece que caiba punição.

- Não!!?

- Pelos homens, não. Quem mata a seu semelhante está fora do alcance do castigo dos homens. Se por si próprio não puder entender a extensão do mal que causou, o horror do ato praticado, em que corta o fio da vida de uma pessoa que estava a cumprir sua missão entre nós, e não poderá continuar a fazê-lo, nada poderemos fazer por ele, muito menos contra ele. E isso vale inclusive para as mortes que acontecem em ações de guerra, para qualquer morte provocada. Se houver uma justiça divina, em outra instância, muito bem, talvez tenha que se explicar ali. Mas aqui, não vejo nada que se possa fazer.

- E aí? Vamos deixá-los livres por aí?

- Claro que não! Se já é mau que tenha tirado uma vida, que se dizer de deixá-lo livre para tirar outras mais? Deve ser mantido afastado da comunidade, expulso da convivência com as pessoas, para não acontecer de lhe permitirmos repetir seu crime.

- Cadeia?

- É o processo que conhecemos. Mas bem entendido, jamais por vingança, jamais para que nos alegremos com o conhecimento de que ele foi mantido em qualquer espécie de privação. Apenas com o sentimento que desenvolvemos quando somos obrigados a manter, sob guarda e isolado, qualquer ser ou coisa que nos seja perigoso, daninho ou prejudicial quando deixado à solta: um dever cumprido, uma tarefa realizada: a segregação. E mais nada.

- Mas cadeia não serve para corrigir, ensinar?

- Depende do que vocês queiram entender como ensinar. Se for para ensinar a cometer crimes com mais eficiência, sem dúvida. Que mais se pode esperar de um local que concentra todos os criminosos, toda a escória da sociedade, em plena ociosidade? O pior ensinará ao menos mau, até que todos se tenham tornado péssimos. Jamais uma cadeia corrigiu a alguém. Se alguém saiu honesto da cadeia, podem ter certeza de que já havia entrado honesto, e possuía caráter suficientemente forte para não se corromper. Seguramente, tratou-se de um erro judicial aquela condenação, pois este sentenciado, por mais que tenha cometido o crime do qual foi acusado, definitivamente não necessitava punição. O que se tem, no sistema carcerário, é o indivíduo menos mau sair piorado.

- E aí? Ele é posto na cadeia; e quando sair?

- Mas quem falou em sair? Matou uma pessoa, e não teve razão justa para isso, não agiu em legítima defesa, ou não provou haver sido um acidente totalmente involuntário, ao contrário, matou por paixão, por cobiça, e nem pode reparar este mal, vai sair como, e para quê? É para ficar segregado, separado das pessoas de bem. Que recrie seus interesses neste outro ambiente, que ache outras necessidades de vida ali, juntos àqueles que são, como si, capazes de se descontrolar a ponto de matar. Dê-se-lhes as comodidades materiais de que um homem precisa para viver moderadamente, e esqueçamo-nos deles - apesar de saber que eles não se esquecerão de nós. Sob guarda, portanto.

Florianópolis, 23 de Abril de 1997

Paulo Vianna da Silva
paulov@newsite.com

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