Folheto

Um simples folheto tem a chave do destino.

"Lembro que vi um folheto de propaganda com fotos das instalações e dos alunos, legendadas com um texto simples e convincente da excelência do colégio. Mais parecia um hotel de luxo."

ano letivo de 1956 havia iniciado há mais de quinze dias e, somente naquele momento, estava em condições de me apresentar naquele longínquo Internato onde iria iniciar o meu curso secundário. O atraso deveu-se a um acidente sofrido na véspera da data prevista para a chegada dos alunos. Fui colocado por meus pais num ônibus ainda de madrugada na Rodoviária do Rio, com destino a Nova Friburgo, cidade onde estava localizado o Colégio, devendo chegar em seis horas, caso não houvesse imprevistos no percurso. Era um menino com dez anos de idade e, até então, nunca tinha me afastado de casa ou tampouco efetuado viagens desacompanhado. Decorrente do acidente, estava com um braço engessado, tinha um ferimento na testa ainda não cicatrizado protegido por um curativo espalhafatoso e sentia dificuldade em carregar a mala relativamente pesada para o meu tamanho e estado. Não sei qual era o sentimento que predominava em mim naquele instante: se o de ansiedade, presente desde o início dos preparativos para a partida ou o de expectativa, em razão do início de um novo ciclo de vida. Estava consciente da grave decisão tomada, aceitando ser internado sem haver nenhum dos motivos que, à época, faziam os pais optarem por este tipo de regime. Medo ou insegurança, tinha certeza, não existiam.

O prosseguimento dos meus estudos era objeto de planejamento antes mesmo da conclusão do primário, cursado em escola pública do bairro onde residia. Procurava-se entre os Educandários existentes no Rio, aquele que além de, obrigatoriamente, possuir boa qualidade de ensino, tivesse tradição e comprovada capacidade de ministrar aos alunos um preparo mais abrangente, assegurando, assim, meu futuro ingresso na carreira naval conforme era o desejo de meu pai. Foi escolhido o Colégio São Bento, onde fui aprovado, após prestar o exame de admissão, muito disputado devido ao pequeno número de vagas e ao grande contingente de candidatos.

Quando tudo parecia estar decidido, minha mãe aventou a alternativa de internato - nunca cogitada anteriormente - num colégio localizado fora do Rio, criado anos antes pela Fundação Getúlio Vargas que, segundo informações obtidas, adotava uma evoluída metodologia de ensino, baseada em conceitos pedagógicos considerados revolucionários e até então somente utilizados no exterior. Além do mais, a cidade onde estava estabelecido era conhecida pelo seu clima saudável e ajudaria na cura da minha asma, cujas manifestações eram agravadas no Rio de Janeiro. Lembro que vi um folheto de propaganda com fotos das instalações e dos alunos, legendadas com um texto simples e convincente da excelência do colégio. Mais parecia um hotel de luxo. A mudança nos planos teve o consenso unânime da família, que levou em conta apenas estas poucas informações, sem nenhuma preocupação em confirmá-las desconsiderando, assim, toda a detalhada e minuciosa pesquisa prévia feita para a escolha do São Bento. Acredito que a mudança tenha sido também influenciada pelo preconceito em relação a colégio de padres existente na época.

Resolvido o ingresso no Colégio Nova Friburgo, mais uma vez fui submetido a novos exames de conhecimentos e a uma bateria de testes psicológicos,ambos superados com relativa facilidade. Uma vez aprovado e feita a matrícula, começaram os preparativos para o início das aulas. Tudo foi providenciado na conformidade do exigido. O uniforme de gala - única peça do enxoval que não era fornecido pelo Colégio - foi comprado na "A Colegial" como sugerido nas instruções. Legal ! Meu primeiro terno completo, não levando em consideração o da primeira comunhão, feita no ano anterior, que era de calça curta e só usado naquela cerimônia.

A maioria dos alunos viajavam de trem, saindo de Niterói, em vagões exclusivos do Colégio e acompanhados pelos professores. Lamentavelmente o adiamento da minha ida na data marcada impossibilitou a realização dessa viagem inicial – posteriormente realizada inúmeras vezes em ambos os sentidos – que anteciparia a minha integração com meus novos companheiros de classe e evitaria que o período de adaptação à nova vida escolar se iniciasse em desigualdade de condições com os demais novatos daquele ano.

A viagem rodoviária transcorria sem problemas apesar dos sacolejos e ziguezagues provocados pela precariedade da estrada. Havia partido depois de repassar com meus pais todas as orientações de como proceder naquela viagem solitária, recebido a recomendação de prestar obediência ao motorista - nomeado compulsóriamente meu responsável até a chegada ao meu destino - e trocado muitos abraços e beijos, regados por lágrimas de ambas as partes.

Estava totalmente dentro do figurino de novato estreando o meu uniforme, com o paletó semi-vestido devido ao braço quebrado, apoiado numa écharpe de seda. Completavam o traje azul marinho, a impecável camisa branca de colarinho, a gravata grená, os sapatos marrons de cadarço e o boné tipo jóquei na mesma cor do terno, com as iniciais do Colégio bordadas, peça que no ano seguinte seria abolida.

O ônibus, ou melhor, o lotação Pullman da LUA, seguia pela estrada de contorno da Baía de Guanabara que mais parecia uma picada, como todo o restante do percurso, razão pela qual não se podia exigir cumprimento de horário, face aos costumeiros enguiços e pneus furados ou aos inevitáveis atoleiros e quedas de barreiras no trecho da serra durante a estação das chuvas. Após duas curtas escalas, cheguei à cidade dentro do tempo previsto, meio amarrotado e empoeirado mantendo, porém, a elegância da partida. O motorista me desembarcou no ponto de parada da condução própria do Colégio, localizado em frente à Igreja Matriz e descreveu o tipo do veículo para me ajudar a reconhecê-lo. Enquanto aguardava a famosa caminhonete amarela tomava contato com a cidade e seus habitantes, sentado na mala e com o braço na tipóia, percebendo os olhares dos transeuntes que já me identificavam como um aluno da Fundação. Até o trem que cruzava a cidade veio me dar boas vindas, passando bem devagarinho pela praça em frente, com a locomotiva apitando, fazendo um alegre alarido e chamando a atenção de todos.

Sentia-me completamente descontraído e seguro, atento às recomendações recebidas dos meus pais. Chega a condução correspondendo à descrição feita pelo meu acidental responsável: sabiam que um aluno retardatário era aguardado.

Acomodado no primeiro banco, via tudo em frente. O restante dos passageiros eram funcionários que me observavam com grande curiosidade em razão da minha inusitada aparência. A ladeira do Colégio me impressionou por ser tão íngreme e pela densa vegetação que a envolvia. Houve momentos que pensei que iríamos voltar de marcha à ré, tal a força que o motor fazia para tracionar o veículo e nas curvas, a sensação era de que não conseguiria fazer. Como se anunciando o término da jornada, iniciada no Rio, começo a vislumbrar entre as árvores a edificação já conhecida através do folheto, que surgiu por inteira quando a valente caminhonete concluiu o percurso. Salto na portaria e tomo consciência da grandiosidade de todo o conjunto arquitetônico: o prédio principal, no estilo normando que o transformou na marca registrada do CNF, o ginásio de esportes e, mais acima, o "científico", prédio que durante toda a minha permanência no Colégio representaria a meta a ser atingida, a certeza de que nos tornávamos adultos, o sonho dos ginasianos por ter até um bar com acesso restrito aos alunos que lá estudavam e moravam, onde era liberado o consumo de refrigerantes e guloseimas, (como éramos inocentes!), só disponíveis aos domingos para os demais.

Naquele momento, pressenti o acerto da escolha e que as informações daquele folheto, visto e lido, eram verdadeiras. Estava iniciando um período de vida feliz e muito rico em aprendizado que marcou toda minha formação e deixaria lembranças e experiências inesquecíveis até hoje.

AUTOR: LUIZ OTÁVIO LINS DE SOUZA

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