PREVIDÊNCIA

Florianópolis, 21 de Dezembro de 1999

Até por volta da década de trinta, não havia no Brasil nenhum sistema de aposentadorias; o cidadão que fosse capacitado e ou previdente, deveria adquirir ao longo de sua vida profissional um volume suficiente de bens patrimoniais, ou construir um negócio que se tornasse rentável por si próprio ou através da administração de seus filhos, para garantir seu sustento na velhice.
Os que assim não procedessem, por desídia, incúria ou incapacidade pura e simples, deveriam continuar trabalhando até o final de seus dias, para não precisarem obter seu sustento através de seus descendentes ou pela caridade pública, tendo como alternativa a morte pela fome.
Naquela década de trinta, as corporações de ofícios atuais, estruturadas em sindicatos, atentas ao problema de seus filiados começaram a formar fundos previdenciários alimentados por contribuições dos trabalhadores associados. Formaram-se assim os IAPs, Institutos de Aposentadorias e Pensões, identificados pela qualificação laborial de cada um: IAPB para os bancários, IAPM para os marítimos, IAPETEC para os trabalhadores no comércio, IAPI para os industriários, e assim por diante. A aparente- mente eficaz e honesta gestão daqueles fundos levou-os à prosperidade, tornando-os em relativamente pouco tempo gigantes financeiros da economia brasileira.
O golpe de 1964, contudo, levou ao poder um grupo de militares que, além de ser por essência despreparados para a administração de uma sociedade civil, acostumados que são à só gerência de quartéis, onde o que conta é a hierarquia e a vontade do comando, agravantemente acreditavam - por motivos que não cabe discutir no momento - que o inimigo do Brasil era seu próprio povo, sendo os militares mesmos os únicos patriotas (com esse pensamento, acreditando que qualquer um que usasse ou exibisse as cores ou os símbolos nacionais o faria exclusivamente por sarcasmo ou desrespeito, foram capazes de legislar a proibição de seu uso pelo povo...). Assim, assustaram-se profundamente quando se deram conta do poder econômico e político que os sindicatos possuíam, detentores que eram de enormes volumes monetários e massa de pessoas. Para impedir sua "má utilização", fecharam os sindicatos, proibindo-lhes a ação, e transferiram para a administração pública (vale dizer, para o Executivo) a administração dos IAPs, criando assim o INPS, Instituto Nacional de Previdência Social, que englobava todos aqueles Institutos em um só.
Neste ponto, é indispensável que se diga - porque muitos até já não se dão conta disso - que os recursos amealhados pelos IAPs eram todos provenientes da iniciativa privada, sendo parte descontada dos salários dos trabalhadores e parte doada pelos empregadores: nada era proveniente de fundos públicos.
A exemplo do que hoje volta a ser feito pelas entidades de previdência privada, os sindicatos administravam aqueles recursos procurando criar um bolo rentável que, no futuro, propiciasse rendimento suficiente para pagar os benefícios necessariamente entregues aos que, completado o tempo de contribuição, solicitassem aposentadoria.
Assim, se por exemplo um determinado sindicato possuísse, entrados num determinado ano civil, duzentos mil contribuintes, estes duzentos mil contribuiriam durante trinta e cinco anos, mês a mês, com importâncias que, ao final, criariam recursos para pagar as aposentadorias de duzentos mil inativos ou pensionistas. Se no anos seguintes ingressassem no sistema trezentos mil trabalhadores, estes outros trezentos mil trariam, de seus salários, contribuição suficiente para, findo o prazo legal, pagar suas próprias aposentadorias, nada sendo ligado às aposentadorias dos duzentos mil ingressados anteriormente. Da mesma forma, se por qualquer razão nos anos seguintes o ingresso de trabalhadores fosse menor, por exemplo cinqüenta mil ao ano, ninguém se assustaria com o fato de que o ingresso de recursos seria menor, porque o dinheiro depositado só viria a ser utilizado trinta e cinco anos depois, exclusivamente para o pagamento das aposentadorias daqueles cinqüenta mil.
Este é um sistema óbvio e simples, facilmente explicável por qualquer professor de matemática elementar e entendível por qualquer aluno de curso ginasiano.
Contudo, os administradores públicos de então, em sua arrogância e miopia, entenderam que o poder que se outorgaram lhes permitia fazer o que quisessem e, mais, lhes dava o direito de subverter não só a matemática como também o ordenamento jurídico, e a partir de 1967 passaram a desviar os recursos da Previdência para outras finalidades, como as obras da Hidroelétrica de Itaipu, a estrada Transamazônica e a Ferrovia do Aço, em volumes contados à razão de bilhões de cruzeiros - que jamais foram repostos. A certeza da impunidade também levou muitos a simplesmente descuidarem das boas regras de administração financeira, fazendo administrações ruinosas dos fundos previdenciários e deixando de cobrar contribuições sonegadas, a título de "manutenção da paz social", como por exemplo se viu nos constantes perdões às dívidas dos clubes de futebol, que se cobrados em seus atrasos seriam levados à falência. Quem poderia imaginar, num clima de panis et circensis, a possibilidade de fechamento de um Flamengo, de um Corinthians ou outro grande clube brasileiro? Arrombada a porteira, por onde passou um boi terminou passando a boiada toda, e dentre as grandes empresas brasileiras, a partir daí parece que só continuou depositando o devido à Previdência quem o desejou fazer.
O passo seguinte dessa administração calamitosa foi o ingresso de categorias profissionais como os empregados rurais e as domésticas que, se efetivamente merecem possuir um sistema previdenciário, nunca poderiam tê-lo de mão beijada - nem com o dinheiro de outros trabalhadores, nem com dinheiro público, que esse não é do governo, mas resultado dos impostos pagos pelo povo. De fato, consentir-se que qualquer pessoa ingresse num sistema previdenciário e conceder-lhe direitos de aposentadoria no dia seguinte, sem nenhum carência, é o caminho mais curto e seguro para a falência do sistema. E isso é o que foi feito.
Note-se que, quando os IAPs foram confiscados, estavam prestes a completar seus trinta e cinco anos de coleta de fundos; não tiveram, portanto, nem a oportunidade de demonstrar se haviam administrado bem os fundos colocados em suas mãos, ou se não.
Passados mais trinta anos (1967 a 1997), atolados em desvios de fundos, concessões ruinosas e administrações temerárias ou pior, sem nenhuma preocupação com a criação de um fundo previdenciário, o que temos? Uma política da mão para a boca, em que a contribuição do mês passado serve para o pagamento dos benefícios do mês atual. Isso obrigou a que inclusive as datas de recolhimento e de pagamento fossem modificadas, de forma a que o pagamento só se realizasse alguns dias após o recebimento pela rede bancária.
De fato, é de se perguntar: se um cidadão contribui durante trinta e cinco anos para a sua aposentadoria - compulsoriamente, hoje, que isso o governo soube fazer - mês a mês, com uma parcela significativa de seu salário, findo esse prazo é de se esperar que exista, nas mãos do administrador, um volume suficiente de recursos para garantir o pagamento de seus proventos de aposentado. Se foram dois milhões os que assim procederam, haverá obviamente recursos para o pagamento das aposentadorias de dois milhões. Assim, o que importa que atualmente só existam quinhentos ou mesmo cem mil jovens entrando no mercado de trabalho? É claro que as contribuições deles, necessárias para o pagamento de suas próprias aposentadorias, só deverão ser utilizadas daqui a trinta e cinco anos, nada devendo ter com os recursos hoje utilizados pelos dois milhões exemplificados.
Entende-se, portanto, que a alegação do governo, de que o menor número de contribuintes se constitui em ameaça para a saúde financeira do sistema, é mentira que busca esconder a dura realidade: de que a ameaça está exatamente nos atos daquele mesmo governo, que mês a mês, durante os últimos trinta anos, desviou e roubou os recursos do povo.
É interessante também perceber-se que, se de um lado os administradores governamentais não têm nenhum prurido em desviar dinheiros dos cidadãos, por outro também não se preocupam em impedir que os cidadãos, enquanto empresários, também desviem dinheiro de seus empregados ou paguem suas dívidas com as instituições públicas de fomento ao desenvolvimento. Assim é que existe hoje uma dívida de R$10.000.000.000,00 (dez bilhões de reais) dos bancos junto ao Imposto de Renda, enquanto seus fiscais despendem tempo atormentando assalariados que não preenchem corretamente suas declarações; uma dívida de R$30.000.000.000,00 (trinta bilhões de reais) de alguns com o BNDES; de R$20.000.000.000,00 (vinte bilhões de reais) junto à CEF; de R$50.000.000.000,00 (cinqüenta bilhões de reais) junto ao Banco do Brasil; quando esses empresários fazem lobby junto ao Congresso, querendo fazer passar leis que perdoem suas dívidas, o governo não sai a público para dizer, com a veemência que dizem quando se trata de catar caramingüás dos salários de idosos aposentados, que isso é roubo à economia nacional.
Em nome da necessidade de repor R$1.200.000.000,00, lançam toda essa intranqüilidade no seio da sociedade, e jamais se lembram ou nos fazem recordar que eles mesmos estão desprezando mais de 200 bilhões em impostos sonegados.
Cabe também lembrar que de 1975 até 1990 o Estado só contratou funcionários sob o regime da CLT. Em 1990 o executivo, percebendo a bola de neve que se formava - pela inexistência daquele fundo de aposentadoria - ao invés de criá-lo tomou uma medida insensata para diminuir os custos com pessoal: tornou todos os funcionários, novamente, "estatutários", com a criação do Regime Jurídico Único, ou seja: voltou a tratá-los como categoria diferenciada, para se eximir da obrigação de depositar seu Fundo de Garantia de Tempo de Serviço. Ora, o trabalhador vinculado à CLT, ao se aposentar com aqueles valores ínfimos, leva consigo o total do FGTS, que representa um patrimônio aceitável. O funcionário público não leva nada, a não ser os valores de seus proventos de aposentadoria.
Isso, a imprensa não divulga.
Podemos concordar em que não haja razão para tratamentos diferenciados entre duas qualidades de trabalhadores; nada prova que quem trabalha para o Estado deve ser considerado diferentemente de quem trabalha para um particular. Mas nosso sistema legal trabalhista considerava. enquanto o funcionário público era submetido à CLT, que "a CLT deve ser aplicada com reservas ao funcionário público, porque o Estado não visa lucro"; em outras palavras, sempre que um benefício era concedido aos empregados, o Estado estabelecia um diferencial para o empregado público, que sempre o prejudicava. Assim, todos os que ingressavam na carreira pública o faziam conscientes de que, apesar de seus ganhos salariais serem menores, seriam compensados pela es-tabilidade no emprego e pela aposentadoria integral.
Que se mude agora o modo de pensar é aceitável. Não se pode admitir é que essa mudança pretenda atingir aos que já têm direitos adquiridos, direitos esses que foram concedidos pelo próprio governo que agora tenta, vilmente, mudar as regras com o jogo em andamento.
O fato é que os aposentados não configuram setor de pressão contra o governo, porque nem greve podem fazer, e não tendo força, ao invés de serem objeto de proteção da instituição que existe para proteger a comunidade - o Governo - tornam-se alvo da cobiça e da covardia desses que imerecidamente foram alçados à posição de governantes de nossa pátria.

E eu ainda pergunto: será que ao menos a imoralidade das pensões vitalícias aos ex-governadores e ex-presidentes, extensivas às suas viúvas, será também confiscada em parcela de contribuição previdenciária, ou para eles também aí a lei é outra?

Paulo Vianna da Silva (Gordo Vianna)

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