O CÂNCER NA SOCIEDADE

O organismo é construído de forma a, em estado de saúde, administrar todos os seus componentes e funções, permitindo que o corpo funcione em harmonia, de forma a que o espí rito que nele reside possa realizar suas mais altas funções.

Seguramente, o mais importante dos seus componentes é o Sistema Retículo En dotelial, SRE, que recobre cada célula de todos os órgãos com um tecido linfocítico, que são as célu las encarregadas da identificação e eliminação dos elementos estranhos e potencialmente perigosos ao organismo.

É o mesmo tipo de células que compõem as amígdalas palatinas e o apêndice vermiforme do intestino, ali postadas por serem as duas portas de entrada aos dois níveis de entra da no corpo: a orofaringe ou garganta, por onde passa o ar e todos os alimentos ingeridos, e o iní cio do intestino grosso, aonde começa a absorção dos nutrientes digeridos: qualquer elemento noci vo que seja introduzido pelo nariz ou boca é ali identificado, o SRE aprende a produzir anticorpos contra ele, e em seguida estes anticorpos o destroem. Se algo escapar a esse controle e ainda as sim não for destruído pelo processo digestivo, ao chegar ao final do intestino delgado, antes de al cançar o local onde poderia passar ao sangue e disseminar pelo sistema, uma segunda porta de fis calização terá oportunidade de combatê-lo.

O SRE se compõe de células sésseis, que se fixam diretamente nos órgãos, e cé lulas circulantes, que viajam pelo corpo através dos líquidos – sangue, linfa e líquido intersticial. Quando em algum local se apresenta uma situação que exige combate mais renhido, e as células sésseis são insuficientes para tanto, as circulantes se dirigem para aquele local e reforçam as "tro pas" combatentes. Se a agressão é continuada, como por exemplo no caso do pulmão de um fu mante ou residente em ambiente poluído, ou um intestino maciçamente infestado por vermes, as células circulantes terminam por se fixar no órgão solicitado, aumentando o contingente do SRE que defende aquela área; assim como, numa área de uma cidade onde a criminalidade seja maior, o poder público determina o estabelecimento de um policiamento mais intenso e, se a marginalida de não puder ser dispersada ou destruída, fixa esse policiamento através da construção de uma de legacia ou posto policial.

De uma célula original, o ovo, o corpo humano termina composto por aproxima damente um trilhão de células, que por sua vez se multiplicam continuamente – embora cada teci do tenha sua taxa própria de renovação. Assim, o tecido nervoso tem uma taxa baixíssima de reno vação, enquanto a pele é trocada a cada trinta dias. Em média, contudo, podemos afirmar que a ca da sete anos nosso corpo é integralmente substituído por um novo. Fica fácil imaginar a quantidade de multiplicações celulares que acontecem nesse tempo, embora seja realmente difícil quantificá- -las. É fácil também imaginar-se o quanto deva ser comum a ocorrência de um equívoco nessa mul tiplicação, e o surgimento de alguma célula diferente, em componentes e função, da célula mãe.

No corpo não existe aposentadoria; uma célula que não tenha mais condições de exercer sua função morre.

Mas o corpo está preparado, em decorrência dos milhões de anos de evolução e aperfeiçoamento, para essa eventualidade: quando isso acontece, o SRE identifica a adulteração, e envia anticorpos para destruí-la.

No corpo não existe criminoso ou vadio, pois existe pena de morte: uma célula que não execute sua função, ou infrinja as normas de sua conduta, é exe cutada.

Quando essa reprodução defeituosa resulta em uma célula com características cancerosas, ou seja, células que não têm a função para a qual foram originalmente projetadas, e não respeitam o limite territorial adequado para aquela estrutura – são invasivas – é fundamental que o corpo a destrua, e isso acontece tão rotineiramente quanto são formadas. Se, entretanto, no momento desse acidente aquele organismo sofreu um choque intenso – notadamente um choque emocional, que deprime o sistema imunológico – essa célula pode não ser localizada ou combatida, e se multiplicará. Chegado a um determinado número de indivíduos, mesmo a recuperação da capa cidade de defesa pode ser insuficiente para combater com eficácia o inimigo, tornado poderoso por seu volume. Identifica-se então a doença, visível através da alterações e perdas de função nas áreas afetadas, e a cura é muito mais difícil, porque demandará o concurso de um número muito maior de células de defesa e o dispêndio de uma energia muito acima do normal, que freqüente mente não é disponível naquele organismo debilitado. A ajuda externa é, então, indispensável.

No Brasil, parece estar acontecendo fenômeno semelhante: em algum momento de nossa vida como Nação, nossos mecanismos de defesa entraram em choque, deprimiram-se, e não foram capazes de identificar aqueles elementos que surgiram mal formados e deformantes, os quais cresceram e se multiplicaram, contaminando os tecidos vizinhos e impedindo o desenvolvi mento de tecidos sadios ao seu redor, que pudessem ao menos isolar o foco infeccioso. Em sua fun ção perversa e daninha, protegeram-se destruindo os sistemas de controle e policiamento, diminuin do mais ainda a já deficiente capacidade da sociedade de se defender, e em seu núcleo enfermo só permitiram o acesso a outras células doentes. Assim, temos hoje um Congresso no qual só são acei tos como candidatos ao ingresso as pessoas que comungam das más intenções dos que já lá estão; um Judiciário que permite como juízes pessoas jovens, sem nenhuma prática de vida para julgar coisas e fatos que freqüentemente só podem ser entendidas por quem já tenha passado por expe riências e vicissitudes; um Executivo que é integrado por indicações oriundas daquele mesmo Con gresso, e não por pessoas preparadas e competentes; uma Polícia que, à custa de pagar salários humilhantes, quase só encontra como membros aqueles mesmos criminosos que deveria estar com batendo; um Magistério cujos mestres mal sabem aquilo que deveriam estar ensinando; um corpo funcional de Funcionários Públicos que, apesar do instituto do "concurso público", só atrai incompe tentes, em razão dos salários vis que oferece – quando não é composto de subempregados tercei rizados.

Qualquer patologista poderá dizer que, num tecido canceroso, ainda se encon tram células sadias misturadas àquelas doentias. Não há porque negar-se que, em nosso tecido so cial, ainda encontramos, em todas essas instituições, pessoas honradas e competentes; mas são, cada vez mais, raras, e estão sendo envenenadas pelos humores doentios da maioria.

Não há dúvida: o Brasil está canceroso.

Colaboração : Dr. Paulo Vianna da Silva

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