O ASSALTO À DISPENSA

Corria o ano de 1964, final de ano e já em provas finais do Científico (véspera de Vestibular), quando o Afonso (popular ABC: A de Afonso, B de Brito e C de Chermont), teve uma brilhante idéia a fim de resgatarmos os dias em que éramos "obrigados"a comer aqueles canelonis (faraós empalhados), carne seca com farofa (jabá sintético com areia)e outras "delícias"que faziam para nós, quer no almoço ou no jantar. Aquele momento era o resgate da fome. Observem que já estávamos na frente do Betinho com 30 anos de antecedência!

Para tal "tarefa nobre", a noite, e após às 23 horas, foram convocados: eu (Japi), Rato Cunha, Lopinho, Paulista, o próprio ABC, Grossman, Bicudo, França, e uma equipe de apoio técnico dos alunos semi-internos irmãos Loureiro, Edmo Zariff, Salustiano, Ricardo Chaloub, Hans Jurgen Joachim ( mais ou menos João José Joaquim), e outros que queriam resgatar a "indignidade"da fome.

A equipe se fazia necessária face ao plano de apoio técnico e logístico, pois estávamos no prédio do Científico e a dispensa ficava no prédio do Ginasial, tendo o famoso "segurança" Jarino circulando por toda a área. Acontece que, como todo filme de ação, descobrimos, sem fazer muita força, que o Jarino era chegado a um "goró", um "mé", uma cachacinha maneira ou algo que servisse para "matar o frio"( e como era frio!). Como cada um de nós tínhamos nossos "cobertores"guardados estratégicamente dentro de nossas japonas (agasalhos da época), tudo ficou relativamente fácil.

Ficou estabelecido que o Afonso, o Lopinho e o Paulista (figuras acima de qualquer suspeitas) ficariam encarregados de ficar "controlando"o Jarino quando ele passasse pelo prédio do Científico, com todos os "apetrechos" que tanto ele gostava .

Enquanto isto, colocamos estratégicamente no percurso Científico/Ginásio/Dispensa, a equipe de apoio "técnico logístico", munidos evidentemente, de apitos, assobios treinados exaustivamente, lanternas para acender com certa cadência já pré estabelecidas e tudo mais necessário para a tarefa determinada.

Eu e Rato Cunha já estávamos com o "armamento " completo: calça jeans, casacos escuros, tênis pretos, sacos azuis escuros da lavanderia, barras de ferro, facas, canivetes, facões, pé de cabra, saca-rolhas (tudo sob a orientação do comandante ABC). Fomos escalados pelo poder central e não podíamos decepcionar. Fizemos, inclusive por serem mais ágeis e magrinhos, vários treinos de Atletismo com os Professores Chianca e Jorge Abib ( corrida, é claro ) . Enquanto o Afonso, o Lopinho e o Paulista "conversavam cândidamente com o Jarino (aqueles papos: a noite tá fria, a lua tá bonita e, outras coisas boas de dizer e de beber também) a turma da retaguarda tomava suas posições e a turma do ataque começava a agir (eu e o Rato).

Em lá chegando, via Praça do Canhão, a porta de entrada foi a muito custo aberta com pé de cabra, com todo silêncio que se fazia necessário e que a "tarefa" exigia. Não podíamos decepcionar a confiança dada pelo Comandante Afonso. Nunca.

Às escuras, porém com lanternas de foco pequeno, adentramos na dispensa. QUE LUXO! Tinha de tudo: vinho do padre, queijo, salaminho, goiabada, presunto, mortadela, e todas aquelas guloseimas que raramente se via no almoço ou no jantar. Olhamos um pro outro, extasiados com aquela fartura e decidimos levar o máximo que podíamos carregar dentro dos sacos da lavanderia, o que foi um erro fatal. Enchemos quatro sacos com tudo o que podíamos levar. Depois saimos e fechamos a porta de entrada (ou de saída?), "sem deixar nenhum vestígio" e voltamos ao prédio do Científico, onde todo o esquema foi desmontado, inclusive o Jarino que já estava mais bêbado que cabra em dia de cio.

Combinamos que só iríamos comer o que foi recolhido, no dia seguinte, na hora do almoço. Nós da equipe não iríamos almoçar. Outro erro fatal. Tudo ficou guardado no quarto ao lado do banheiro que estava vazio, e que ei tinha requisitado um dia antes ao professor Edmar, Coordenador do Científico, para "estudar" no que ele me cedeu gentilmente.

Dia seguinte. Todos da equipe acordaram como anjos... Tomamos café da manhã, fizemos uma das provas finais e a partir daí começou o reboliço inexplicável. O Encarregado da Dispensa resolveu (não sabemos porque ) botar a boca no trombone e começou aquele "zum-zum-zum "; quem foi quem não foi, um auê (achei até desnecessário). E nós da "equipe da fome" achávamos tudo aquilo uma perseguição inconsequente e, só fazíamos olhar uns para os outros mas, com a consciência do dever cumprido!

Chegada a hora do almoço, a equipe do trabalho (orientado, diga-se de passagem), não foi almoçar. Como também não foram os professores Amaury, Edmar e Ezequiel, que ficaram "não sei porque"circulando pelos dormitórios onde nós estávamos... Perguntados se não iríamos almoçar, a resposta já estava na ponta da língua: "não, mestres, vamos estudar para as outras provas finais". No que "confiaram plenamente". Lá pelas tantas , com o esvasiamento dos "guardas" ( a gente achava que era isto realmente ), resolvemos resgatar nossa fome dignamente poe todas as outras vezes que comíamos o que não queríamos. Era o dia da forra. Nem que fosse um dia só. Seria um lauto almoço, o almoço dos deuses.

Entrei no banheiro, passei pelo para-peito da janela, pelo lado externo do prédio, abri a janela do quarto, entrando no mesmo. Meio caminho andado. Abri aporta do quarto e convidei a equipe para "almoçar" . Foi aquela farra. Queijo, salame, vinho, etc...Eis que para nossa surpresa, em pleno almoço mais que merecido, abre a porta do quarto, o prof. Ezequiel e nos pega com a boca na butija, ou melhor no salame, no queijo, no vinho, etc... Fomos todos " gentilmente convidados", contra a nossa vontade, claro, para comparecer a Sala do Diretor, Prof. Amaury, que já nos esperava para trocar algumas amabilidades que o caso merecia. Lá chegando, fomos todos "muito bem tratados" com uma recepção digna, tal qual Embaixadores recebidos pelo Presidente da República em dia de festa.

A conversa, no entanto, descambou para um nível do qual "não merecíamos". Sofremos as piores pressões e ameaças que um aluno pode sofrer: expulsão, reprovação de ano, chamar os pais para pagar os prejuízos e outras pressões cabíveis. Ele queria que a gente dissesse de quem tinha partido idéia. É ruim, hein?

Livramos a "cara" do Afonso e, como o Lopinho (filho do Presidente da FGV) estava " tremendamente comprometido com a missão " ,

a saida salomônica do Prof. Amaury Pereira Muniz digna, diga-se de passagem, foi deixar-nos em segunda época, impedidos de fazer as duas últimas provas finais . O que foi feito realmente. Na segunda época. Todos foram aprovados com louvor. Esta foi uma das "maiores injustiças" já feita pelo CNF contra um grupo de alunos que só queria se alimentar...

MORAL DA HISTÓRIA: Quem tem santo forte nunca morre pagão, nem de fome e nem perde o ano só por causa de uma "bobagenzinha". Viva o Lopinho. Viva o Lopão.

Um forte abraço de 30 anos de ausência involuntária. Até breve.


CARLOS VERILSON CORREIA (JAPIASSÚ)

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