NÓS E AS ÁRVORES

Isto eu aprendi de meu amigo Cláudio de Moura Castro, que aprendeu, por sua vez, com seu avô, o erudito expert no Marquês de Pombal, Marcos Carneiro de Mendonça, também ex-goleiro da seleção brasileira, em 1919, e que conheci no seu casarão do Cosme Velho, no Rio de Janeiro: uma das penas previstas nas Ordenações Filipinas do começo do século XVII, em Portugal, era o degredo para o Brasil das pessoas que cometiam o crime de cortar uma árvore (em caso de corte de duas árvores, o castigo era degredo na África!). Tendo nascido sob a égide de tal maldição, não se pode esperar do brasileiro de ascendência européia uma atitude mais civilizada diante da natureza (porque os nossos indígenas sempre a tiveram de forma admirável). Os brasileiros, de fato, parecem comprazer-se com a destruição do meio ambiente. Uma vez, andando de barco no rio São Francisco, em 1975, perto de Barra, na Bahia, junto com minha mulher e meus filhos, vi um dentista (pernambucano) exercitar sua pontaria, só para demonstrar sua perícia, em cima de um pobre pássaro que se divertia no galho de uma árvore a certa distância. Ouvimos o tiro de espingarda e ainda percebemos o indefeso animalzinho cair morto nas águas turvas do Velho Chico. Foi revoltante. O gesto assassino do dentista - natural de Caruaru e então morando na cidade de Barra, que matou por matar - provocou enorme mal-estar em um antropólogo inglês, nosso amigo, que desfrutava do mesmo modo do passeio. Foi difícil conter-lhe a fúria e agüentar a companhia, por mais algumas horas, daquele filho de degredados portugueses que, por cometerem crimes ecológicos em sua terra, eram banidos para cá.
Um desses criminosos, provavelmente, terá cortado os dois pés de azeitona frondosos, belíssimos, que tornavam mais gostoso o terreno vazio - de propriedade do espólio do ex-diretor do Patrimônio Histórico em Pernambuco, Ayrton da Costa Carvalho - junto da minha casa em Olinda. Foi no dia 11 de setembro. Eu e minha mulher estávamos em Gravatá. Na nossa volta, no dia 12 (domingo), à noite, encontramos as duas árvores literalmente esquartejadas a serra elétrica, bem no estilo hediondo dos que põem abaixo a floresta amazônica. Aqueles dois espécimes vegetais, que tinham, talvez, mais de cinqüenta anos de idade e que não faziam mal a ninguém, foram destruídos impiedosamente, sem que se saiba exatamente por quê. Se alguém deveria incomodar-se com as árvores, este alguém seria eu, porquanto elas depositavam suas folhas sobre o telhado de minha casa, provocando entupimento de calhas e grandes goteiras quando começavam as chuvas de cada ano. Longe de mim, entretanto, qualquer sentimento de mal-estar pela presença de tão belos - como dizem os matutos - pés de pau. O incômodo das goteiras e da necessidade de removê-las era só um pequeno ônus diante do enorme benefício, inclusive estético, que as árvores proporcionavam. Razão tinha Gilberto Freyre quando, em 30 de dezembro de 1923, escreveu aqui mesmo neste DIARIO: "Em centenas de anos, não aprendemos a sentir o encanto das nossas árvores. Nem o valor. Porque se os sentíssemos, acima de considerações de ordem econômica, estaria o esforço a favor da árvore - da árvore na rua e da árvore ao lado ou em redor das habitações".
Tentei descobrir de onde partira a permissão para a derrubada das azeitoneiras (que também causavam nódoas no meu carro, o que nunca me aborreceu). Apelei para a Prefeitura de Olinda, mas não obtive retorno. Afinal, no sítio histórico olindense, árvore só se abate com permissão do governo municipal. Uma ação como a praticada, por outro lado, não parece ter comovido ninguém que passasse por ali na hora, pois o sensato, neste caso, era questionar a ação (afinal, tudo acontecia num local aberto, à beira da calçada, por onde transitam todo dia numerosos turistas passeando na direção da Sé). Era o caso de chamar a imprensa, de telefonar para a polícia do meio ambiente (Cipoma), para a prefeitura, para os bombeiros, para ONG's ambientalistas. Em um lugar mais tocado pelo sentimento do encanto de nossas árvores, do registro juvenil de Gilberto Freyre, as pessoas deveriam abraçar os pés de azeitona, subir neles, chamar a atenção, enfim, dos que testemunhavam o crime ecológico. Uma legislação dura como as Ordenações Filipinas faz falta nessas ocasiões, para despachar infratores como os deste episódio para destinos no Timor Leste, Serra Leoa ou Ruanda.
Em Gravatá, onde há uma tradição de destruir e podar árvores em que só ficam cotocos de lembrança, atitude de descaso também se observa hoje - como espelho de coisas semelhantes que estão sucedendo no Recife (haja vista o mau exemplo do projeto Eu Vi o Mundo... e seu sacrifício de árvores na praça do Marco Zero) e em todo o país - com a Prefeitura escolhendo para lixão um terreno em ponto de 700 metros de altitude, de onde escorrem águas para inúmeras nascentes nas encostas vizinhas e inclusive na direção de um açude que abastece de água a cidade! Isso chega a ser inacreditável e precisar de uma ação enérgica dos defensores do meio ambiente para que não só se preserve o local, como o próprio suprimento de água de um núcleo urbano tão carente desse líquido. Aliás, também em Gravatá pode-se ver um depósito infecto de lixo amontoado bem juntinho de tanques da Compesa e chafarizes de que se serve a população desprovida de água corrente em suas casas.
Coisas assim não deveriam fazer nenhum sentido. Elas, porém, só tendem a se agravar na medida em que nós, ironicamente, avançamos em graus de desenvolvimento e nos aproximamos de um novo século e de um novo milênio. Enquanto isso, em países como a Costa Rica - que nem exército tem - tomam-se todos os cuidados para a preservação das árvores, da natureza, dos ecossistemas. Lá, por exemplo, é proibido construir qualquer coisa junto das praias. Se o turista vai, por exemplo, a Punta Leona, no Pacífico, onde foi feito o filme Colombo, com Gerard Depardieu, só vê mato à beira-mar. Não há um único vendedor do que quer que seja, nenhuma casa, nenhum hotel. Tudo está oculto a uma distância conveniente e nada dos espigões, que por lá chamam de rasca-cielos. Dar valor à natureza, às árvores, é isso. Não o que fizeram e fazem em Olinda, no Recife, em Pernambuco. Ah, as Ordenações Filipinas!

Clóvis Cavalcanti
Eeconomista e pesquisador social da Fundação Joaquim Nabuco

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