ALIÁS

Tudo o que me foi dado a saber da vida teve origem em Friburgo, naquelas matas, naquelas metas, naqueles mitos.

Aprendi, logo de saída, como crianças de dez, onze anos podem ser carinhosamente cruéis. Zonzo, embarquei num ônibus, em Niterói, para a aventura estranha de viver longe de casa, de tudo, de todos. Papai, ligeiramente constrangido, visivelmente culpado, procurava me compensar esbanjando carinho. Eu, dentro do ônibus: ele, na plataforma de embarque:

- Você vai gostar do colégio, filho. Vou sentir falta, filho. Boa viagem, filho. Você quer cocô, filho? Quer xixi?

Ótimo, o papai, né? Durante toda a viagem, esqueci a tristeza e enchi o peito de raiva, esses caras vão ver só com quem estão se metendo.

- Quer cocô, Piauí? - dizia um veterano, provocando gargalhadas.

- Não, dizia outro, fingindo compreensão. Ele quer é xixi, não é Piauí

Não reagi. Engoli a raiva e a piada se esvaziou. Só uma vez ou outra, ano após ano, alguém, por desfastio, retirava do fundo da memória a provocação:

- Quer cocô, Piauí? Quer xixi?

Conquistei a amizade e o respeito dos companheiros, com muito tato, retidão de caráter e algumas porradas. Tornamos-nos cúmplices no aprendizado da vida. So1itários, aprendemos o amor na sua forma mais simples, artesanal:
- Quantas, hoje?

- Duas.

- Eu, três.

Desenvolvemos, bem orientados, uma extrema habilidade para lidar com problemas, driblando nossas deficiências:

- Piauí! - ecoa o Prof. Jamil, numa aula de História, ao ar livre.
- Por que Mem de Sá foi considerado o "espelho dos governadores"?

- Porque antes de fazer qualquer coisa, ele refletia muito.

Tomou, papudo? Para quem não estudou a matéria, eu me saí muito bem, merecendo, o fato, registro nas páginas de "A Natureza", que em seguida me abriu espaço para primeira colaboração em jornal, danação que me perseguiu a vida toda.

Aprendi muito! Aprendi a respeitar o cheque, por exemplo. Na volta ao Rio, de trem, encerrado o ano letivo, vi que sobrava uma única folha do talão que nos era dado pelo nosso banco. Engraçadinho, saquei da caneta e ordenei: "Pague-se ao portador deste a quantia de (espaço em branco, onde escrevi: Cr$ 1 .000.000.000.000.000.0000 )Lancei o cheque pela janela, próximo à estação de Cachoeiras de Macacu, e - férias prá que te quero? Dois ou três meses depois, primeiro dia de aula, o Prof. Campos põe todo o colégio em forma, no pátio, exibe o cheque e me espinafra. Aprendi a respeitar cheque. Já pensaram como o Brasil seria diferente se todos os políticos tivessem estudado em Friburgo e aprendessem a respeitar cheque? Ou, pelo menos, aprendessem a se dar ao respeito?

Aprendi a respeitar a Natureza. Conheci as entranhas de cada besouro, lagarta ou pardal. Tive coleção de girinos, aprisionados em vidros, em latas ou em enseadas liliputianas construídas nas margens do rio Canaletaa, perto da Escolinha. Como todos, vi vagalumes se transformarem cm pincéis vivos. Com dez ou vinte deles, bem firmes entre o polegar e o indicador, era possível escrever palavrões belíssimos, que brilhavam nas paredes quando as luzes do dormitório eram apagadas. Aprendi a respeitar o porco-espinho, e ainda hoje recomendo: nunca chute um porco espinho. Suas farpas atravessam o couro do sapato e dilaceram seus pés. Dói muito.

E o estudo formal, que beleza! Em eventuais viagens, comprovo que, sem nenhum aprendizado suplementar, apenas com as aulas do CNF, consigo falar inglês, francês, espanhol, italiano e latim. É verdade que falo essas línguas todas ao mesmo tempo, na mesma frase, mas sempre me faço entender. Minhas filhas morrem de ódio: Da Vinci? Leonardo? Nasceu em 1452. Era rival de Michelangelo e Rafael. Grande pintor. Expoente da escola florentina, é. O quê? Obrenovitch? Ah, era o apelido da dinastia que reinou na Sérvia de 1815 a 1903. Isto é, com exceção do período de 1824 a 1858, mas é outra história. Zinco? É um corpo simples metálico de um branco azulado. Funde a 419 graus vírgula quatro e tem a densidade de 7,12.

O nome vem de zink, do alemão. Elas morrem de raiva, minhas filhas, e dizem que sou metido a saber de tudo. Não ligo, e advirto: "Abusus non tollit usum."

Éramos crianças especiais. Freud enlouqueceria ao ver que nenhum de nós se fixou em pai e mãe. Adultos, somos fixados nas crianças que fomos. Hoje, já avô, passado dos 50 anos, me sinto neto de mim mesmo.

Vejo o pátio, vejo os professores, vejo os colegas e me vejo, aquele garoto cabeçudo, muito bonitinho, com um sorisso maroto, como quem vai dizer. "Quer cocô, Piauí? Quer xixi?"

Ass. CARLOS ALBERTO CASTELO BRANCO
(PIAUÍ, TURMA DE 1954)

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